"Não sou o Manuel da Pastora mas sou do tempo dele", otro delicioso artículo de Joaquim António Emídio
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Não sou o Manuel da Pastora mas sou do tempo dele
Escolhi o Manuel da Pastora para esta crónica por causa do valor dos euros na nossa vida de pobres mortais, o valor das propriedades para quem um dia morre e se transforma em pó. Tenho a certeza que o Manuel da Pastora, se fosse vivo e precisassem dele para gerir a coisa pública, era mais competente que esta rapaziada de hoje.
JAE
Na minha terra havia um homem chamado Manuel da Pastora que tinha a fama, e talvez o proveito, de ser um forreta. Era um pequeno proprietário de terras com algumas vacas num quintal de uma casa rural no centro da vila da Chamusca, que vendia leite; abastecia uma leiteira, a senhora Custódia, que ia de casa em casa com uma bilha de bico mas vendia também a quem entrava pelo portão da propriedade uma de bilha de mão (hoje uma pesquisa na Internet mostra como estas peças se tornaram objectos de colecção). Em rapaz trabalhava perto da casa do Manuel da Pastora; conheci-o bem, o suficiente para me lembrar da fisionomia dele como lembro a de alguns familiares. Para a época era um homem remediado, com um feitio de bonacheirão, mancava, o que o obrigava a usar bengala, e era de poucas conversas. Como tinha o privilégio de trabalhar atrás de um balcão, num espaço onde ele ia de vez em quando, tinha estatuto para lhe roubar confidências. A alcunha de Manuel da Pastora é fácil de decifrar, porque tinha vacas leiteiras, e a de associar o seu nome a um forreta também não é difícil de perceber. Quem vende e vive do que vende é lógico que tem que ser rigoroso nas contas; e o trabalho por conta própria, às vezes, é também tão castigador que faz com que a pessoa mais sensível ao sofrimento dos outros se torne uma pedra quando lhe pedem fiado ou uma pequena facilidade na compra. Dantes, como hoje, a maioria das pessoas que pediam fiado um dia fugiam e deixavam rasto. Não era por mal. Parecia evidente que fazia parte do contrato de ter conseguido crédito. Não estou a generalizar; muitas vezes as pessoas não conseguiam mesmo sobreviver sem essa facilidade de comprar fiado e conheci e conheço pessoas que não dormem enquanto não pagam as suas dívidas. Também era assim nesses tempos, só que hoje uma lata de sardinha custa um euro e um maço de cigarro custa o preço de cinco latas de sardinha. E hoje é mais fácil a uma pessoa pobre sustentar o vício do tabaco do que nos tempos de Salazar era matar a fome.
Escolhi o Manuel da Pastora para esta crónica por causa do valor dos euros na nossa vida de pobres mortais, o valor das propriedades para quem um dia morre e se transforma em pó. Tenho a certeza que o Manuel da Pastora, se fosse vivo e precisassem dele para gerir a coisa pública, era mais competente que esta rapaziada de hoje.
JAE
Na minha terra havia um homem chamado Manuel da Pastora que tinha a fama, e talvez o proveito, de ser um forreta. Era um pequeno proprietário de terras com algumas vacas num quintal de uma casa rural no centro da vila da Chamusca, que vendia leite; abastecia uma leiteira, a senhora Custódia, que ia de casa em casa com uma bilha de bico mas vendia também a quem entrava pelo portão da propriedade uma de bilha de mão (hoje uma pesquisa na Internet mostra como estas peças se tornaram objectos de colecção). Em rapaz trabalhava perto da casa do Manuel da Pastora; conheci-o bem, o suficiente para me lembrar da fisionomia dele como lembro a de alguns familiares. Para a época era um homem remediado, com um feitio de bonacheirão, mancava, o que o obrigava a usar bengala, e era de poucas conversas. Como tinha o privilégio de trabalhar atrás de um balcão, num espaço onde ele ia de vez em quando, tinha estatuto para lhe roubar confidências. A alcunha de Manuel da Pastora é fácil de decifrar, porque tinha vacas leiteiras, e a de associar o seu nome a um forreta também não é difícil de perceber. Quem vende e vive do que vende é lógico que tem que ser rigoroso nas contas; e o trabalho por conta própria, às vezes, é também tão castigador que faz com que a pessoa mais sensível ao sofrimento dos outros se torne uma pedra quando lhe pedem fiado ou uma pequena facilidade na compra. Dantes, como hoje, a maioria das pessoas que pediam fiado um dia fugiam e deixavam rasto. Não era por mal. Parecia evidente que fazia parte do contrato de ter conseguido crédito. Não estou a generalizar; muitas vezes as pessoas não conseguiam mesmo sobreviver sem essa facilidade de comprar fiado e conheci e conheço pessoas que não dormem enquanto não pagam as suas dívidas. Também era assim nesses tempos, só que hoje uma lata de sardinha custa um euro e um maço de cigarro custa o preço de cinco latas de sardinha. E hoje é mais fácil a uma pessoa pobre sustentar o vício do tabaco do que nos tempos de Salazar era matar a fome.
Lembro-me muita vez do Manuel da Pastora por o seu nome estar associado a uma pessoa avarenta, egoísta, gananciosa, o que não tenho a certeza que fosse o caso. Mesmo assim sempre tive receio que por tanto trabalhar, e a vida me correr bem, me tornasse num Manuel da Pastora, com medo que o dinheiro nunca fosse suficiente, guardando sempre para o dia seguinte aquilo que já deveria ter gasto, viajado, comprado, usufruído nos anos anteriores. Ainda hoje, e por isso escrevo sobre o assunto, apanho um cêntimo do chão e guardo na carteira, mais em memória desses tempos antigos e do respeito que tenho pelo dinheiro, do que pelo valor ou por qualquer superstição. No meu dia-a-dia, a cada dia que se aproxima a idade da velhice, gasto menos dinheiro do que gastava. Se viajo evito hotéis caros, troco os restaurantes de luxo pelas tascas ou cervejarias, não estrago o dinheiro anunciando, na noite, balcão aberto para os amigos e amigas; conheço as regras principais para poupar gasóleo, água e luz, sou eu que vou com os carros às oficinas, compro e pago para saber sempre com o que conto e estou cada vez mais atento para ajudar na altura certa, e não por capricho ou vaidade, aqueles que são da família.
Sempre gostei no meu tempo de formação de ter a atenção dos homens mais velhos, de jogar às cartas a dinheiro com eles, de lhe ouvir contar o que se passava de errado nas suas vidas, de estudar as palavras e as atitudes dos mais temidos e respeitados. Em vez do Manuel da Pastora podia ter escrito uma crónica contando os episódios de vida com o Manuel Salgado, Tomaz Vacas, Manuel Eduardo Tecedeiro, José Félix, António Padeiro, Manuel Estevão Laranjinha, entre tantos outros. Escolhi o Manuel da Pastora por causa do valor dos euros na nossa vida de pobres mortais, o valor das propriedades para quem um dia morre e se transforma em pó; e escrevi também, embora aqui a escolha não tenha sido importante, porque a Chamusca é uma terra cada vez mais decadente; tenho a certeza que o Manuel da Pastora, se fosse vivo e tivesse forças, e precisassem dele para gerir a coisa pública, era mais competente que esta rapaziada de hoje. - JAE.
Joaquim António Emídio é editor e director geral de O MIRANTE, o maior e melhor jornal regional de Portugal